[brainstorming]
Eu nunca fui uma pessoa muito supersticiosa. Pra falar a verdade, muitas vezes questionei se havia mesmo essa coisa toda de destino. Entretanto, na tarde em que meu pedido foi atendido pelos números iguais no relógio, tudo mudou.
Bom, talvez seja melhor começar do começo.
[rascunho]
Sinto uma cutucada no meu ombro direito. Tento fingir que não senti ou que não era comigo, mas Pedro insistiu até eu finalmente me inclinar pra trás, de forma que ainda fosse possível manter os olhos na professora de matemática.
— Passa a resposta da seis. — Ele sussurra. Quando balanço a cabeça em negativa, voltando pra frente, ele me puxa e choraminga: — Vai, Luísa, por favoooor! — Alongando a última sílaba, como ele sempre sabe que me convence. — Prometo que vou estudar mais na próxima… Se eu ficar de rec minha mãe come meu — A professora levanta os olhos de sua leitura, e nós disfarçamos. Ela volta e relaxamos. — cu!
Dou uma risada baixa e me inclino pro lado, de forma que ele consiga ver minha resposta. Depois de alguns minutos, me ajeito e continuo a prova. Sempre digo pra mim mesma que não vou mais fazer isso porque não o ajuda de verdade, mas nunca resisto. Pedro é simplesmente uma praga.
— Valeu, Lulis. Já disse que te amo? — Bem na hora, Dona Márcia olha pra nós. — Agora fudeu.
Ela se aproxima com seus passos rígidos treinados desde a época em que fazia parte do exército de Júlio César, parando bem ao lado da mesa de Pedro. Ela pega a prova dele e para ao meu lado. Fico ali observando-a comparar nossas respostas.
— Sabe o que eu acho interessante? — Márcia coloca o dedo indicador no queixo e olha para cima, como se estivesse pensando. — Vocês dois cometeram o mesmo erro no meio da conta. — Ela fica na minha altura e aponta para o meio da folha. — Doze dividido por três igual a três? Eu sempre te alerto sobre fazer as contas de cabeça com pressa, Luísa.
Dou um sorriso amarelo, vendo todo o meu futuro sendo jogado fora pelo zero que vou levar em matemática.
— Os dois pra diretoria. — Ficamos paralisados, encarando aquela criatura mumificada e, ao mesmo tempo, estranhamente conservada. — Agora!
. . .
— Foi mal. Sério, foi mal mesmo. — Pedro diz, inconsolável. — Prometo que essa foi a última vez, Lulis.
Eu tinha plena consciência de que não seria, mas ainda assim fiz que sim com a cabeça. Viemos parar numa espécie de “canto do pensamento”, esperando pelo horário livre da diretora.
— Tá tudo bem. — Tento tranquilizá-lo (e, se possível, a mim mesma também).
— Parece tudo ótimo mesmo, com você batendo a cabeça na mesa. — Diz uma voz vinda de trás.
Eu disse “uma voz”? Quis dizer “a voz”! Lisa estava falando comigo? A Lisa do terceiro ano, esmalte preto descascado e cabelo com mullet. Honestamente, eu nunca vi uma pessoa tão bonita em toda a minha vida. Logo, fiz o que qualquer pessoa sensata teria feito (continuei batendo com a cabeça na mesa). Ela riu. Meu Deus ela riu e eu senti que todas as borboletas do planeta faziam um arrastão no meu estômago.
— Tá aqui porquê? — Pedro pergunta.
— Ah, você sabe… O de sempre. — Ela dá de ombros.
— Como assim o de sempre?
— Dormi na aula. — Nós duas respondemos em uníssono. — Pera aí, como é que você sabe disso? Nem sou da sua sala.
Os dois me olham como se eu fosse uma stalker, ou algo do tipo. O que eu claramente não sou!
— É que do lugar que eu sento dá pra ver um pedacinho da sua sala… E consigo te ver dormindo.
Pedro assente, aparentemente tranquilizado por eu não ser uma psicopata nem nada. Lisa, no entanto, fica me olhando com um sorriso leve nos olhos mas, ao mesmo tempo, muito séria. Sinto que vou ter um derrame se sustentar o olhar, então apenas pego meu caderno e desenho qualquer coisa.
Para a minha surpresa, ela se levanta e para bem atrás de mim. Na altura do meu ouvido, ela diz:
— Então quer dizer que você fica me assistindo dormir? — Ela ri e me dá um beijinho na bochecha. — Fofa.
Como se nada tivesse acontecido, ela volta para o seu lugar, abaixa a cabeça e dorme.
[à caneta]
Já estávamos ali há quarenta minutos e nada de a diretora aparecer. Eu só conseguia pensar que se eu ficasse mais um minuto naquela sala com Lisa ia passar mal e seria a maior vergonha. Olho para o relógio e são 15:15, por isso, resolvo fazer um pedido. Não era 00:00, mas não custava tentar.
Parecendo ouvir meus pensamentos, Lisa dá um pulo da cadeira, dá a volta pela sala e vai pra janela olhar o movimento dos corredores.
— Tudo limpo. — Ela diz.
Encaro-a sem muita animação, porque se não havia ninguém lá fora, era provável que levasse um tempo ainda para irmos à direção. Mas, ao que parece, não era nisso que ela estava pensando.
— Vem comigo. — Ela puxa minhas mãos. Ao ver que hesito, continua: — Relaxa, gatinha, nós vamos voltar a tempo de levar bronca.
Pelo amor de Deus, ela piscou pra mim.
Pulamos a janela e começamos a correr, deixando Pedro todo confuso pra trás. Corremos até chegar a um buraco no canto do muro da escola. Lisa ficou alternando o olhar entre o muro e eu, levantando as sobrancelhas sugestivamente.
— Se você acha que eu vou passar por esse buraco todo estrupiado, cheio de farpa, endoidou.
Ela ri e passa na minha frente, me encarando do outro lado.
— Confia em mim e vem logo. — Ela ri. — Senão vou te deixar aí!
Odeio que eu não consiga resistir a uma mulher bonita. Em um minuto já estávamos no meio da rua, indo pra algum lugar que eu nem sabia qual. É muito brega dizer que meu coração estava saindo pela boca? Acho que é mais brega ainda dizer que ele estava todo ali na minha frente, correndo desgovernado, né? Enfim.
[camadas de tinta]
— Voilá! — Lisa grita assim que chegamos a uma casa da árvore toda caindo aos pedaços.
— Uau..? — Tento fingir que gosto do que vejo, porque ela parece realmente muito animada. Revira os olhos, me puxando pra dentro. Quando tira os panos brancos das paredes, nem sei pra onde olhar. — Uau!
— Você conhece alguma outra palavra? — Tira sarro.
— É que só o segundo foi genuíno.
Ela me dá um soco no braço. Nunca mais vou lavá-lo. Brincadeira (ou não).
As paredes estão cheias de desenhos e palavras. Uma pessoa no banheiro, um campo de guerra, um fumante, uma criança voando da balança. Algumas das letras de música eu conhecia. Não conseguia parar de sorrir, olhando cada centímetro daquilo tudo.
— E aí? O que achou? — Ela pergunta, encostada no batente da porta.
— É… Demais! — Mal consigo tirar os olhos de toda aquela bagunça que, de algum jeito, fazia muito sentido. — Obrigada por me trazer aqui.
Ela sorri de canto, me entregando uma lata de tinta branca e um pincel pequeno.
— Não posso… Acho que isso é muito particular.
— Se eu não quisesse você no meu mundo, nem teria te trazido.
Tento segurar minha vontade de dar pulinhos de alegria e pego o material de sua mão. Encontro um canto vazio e escrevo “tem poucas coisas tão bonitas quanto a pontinha do seu nariz”. Quando enfim me viro pra Lisa, seu olhar parece indecifrável. Impenetrável? Ameaçador, apaixonado? De repente meu vocabulário ficou vazio e eu só conseguia pensar “ai, caralho! A Lisa acabou de me empurrar na parede!”.
— Ela tá me beijando! — Arregalo os olhos quando percebo que disse em voz alta. Ela ri e pergunta:
— Sim, ela tá. Você não quer? — Levanta uma sobrancelha.
Não respondo, só a puxo de volta. Sua mão está na minha cintura, enquanto seguro seu pescoço e ouço sua respiração alta. Suas mãos passam pelo meu corpo todo e tenho medo de desmaiar, mas ao invés disso, a puxo pra mais perto e seguro uma de suas pernas. Sinto que ela sorri e não consigo não fazer o mesmo.
Quando paramos, sem fôlego, pergunto:
— Como você sabia?
— O quê? Que você queria me beijar?
Meu rosto fica instantaneamente vermelho, mas faço que sim com a cabeça.
— Porque eu queria te beijar também. — Ela aponta pra um desenho no alto, que eu não tinha reparado antes. Era eu, anotando algo, muito concentrada. — É que do meu lugar dava pra ver um pedacinho da sua sala.
Não consigo evitar e a puxo de volta.
[finalização]
Agradeço mentalmente ao relógio. Imagino o que aconteceria se ninguém mais fizesse pedidos à meia-noite, mas sim às 15:15, como eu. Afinal, pedi pra sair logo daquela sala e acabei ganhando bem mais do que isso (agora tenho todas as cores do mundo comigo).